Fábrica de ilusões: Bahia, Vitória, sonhos e a troca da escola pela bola

3 de dez. de 2012

Na abertura da série de reportagens sobre a relação da dupla Ba-Vi com a escola, o GLOBOESPORTE.COM conta histórias e apresenta personagens.

header BA x VI - base (Foto: infoesporte)
Romário, Ronaldo, Neymar. Milhares de crianças brasileiras cresceram sonhando em repetir o feito de seus ídolos dentro de campo. No entanto, o sonho de se tornar um herói dos gramados passa por uma obrigação: a escola. Certamente, muitos prefeririam repetir aos quatro cantos a frase imortalizada por Adoniram Barbosa: “Adeus, escola. Eu vou partir para nunca mais voltar”. Mas a educação é um direito até mesmo daqueles que escolheram o caminho da bola.
base bahia (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)Os sonhos do futebol terminam deixando de lado a escola (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)
O Estatuto da Criança e do Adolescente obriga os jovens integrantes das divisões de base dos clubes brasileiros a frequentarem a escola, e cabe às instituições cuidar para que os jovens tenham acesso às salas de aula. A fiscalização disso tudo fica por conta do Ministério Público Federal.
Na Bahia, os dois maiores clubes do estado passam pelo mesmo problema: o baixo interesse dos alunos-atletas pelos estudos. Dispostos a vencer no mundo do futebol, a maioria deixa de lado a oportunidade de se dedicar às salas de aula para viver em função da bola. Os salários astronômicos, a fama e a possibilidade de uma rápida ascensão social são fatores determinantes para fazer do esporte o predileto em relação aos livros e ao ambiente escolar.
MENU MATERIA - Bahia x Vitoria (Foto: infoesporte)
Entretanto, algumas iniciativas são válidas para fomentar o interesse dos jogadores pelo ambiente acadêmico. Um dos exemplos vem do Vitória, que, no começo dos anos 2000, realizou um projeto em parceria com uma faculdade particular de Salvador para investir na educação de nível superior para os atletas. Atualmente a parceria está suspensa, mas vários beneficiados estão rodando os campos do mundo. O atacante Petros, do Boa Esporte, e o meia Sthepan, que atua no futebol romeno, são dois exemplos dos rubro-negros diplomados com nível superior.

De olho no futuro, o clube também investe nas crianças. Atualmente, o Vitória tem uma parceria com dois conceituados colégios particulares da capital baiana. Quarenta jovens são bolsistas nas duas instituições. O aluno-atleta interessado em estudar em um dos dois colégios passa por uma seleção e, se aprovado, torna-se bolsista. Além disso, os demais garotos que moram na Casa do Atleta, na Toca do Leão, estão matriculados em escolas públicas do entorno do CT, no bairro de Canabrava, em Salvador.

- Umas 40 crianças fazem parte da parceria do Vitória com dois colégios particulares. Na verdade, eles têm que acompanhar o nível dos colégios. Tem os testes para entrar. Porque não adianta querer colocar qualquer menino. O menino às vezes não vem de uma condição favorável. Não que vá perder de ano, mas é que não consegue acompanhar mesmo. Portanto, há uma avaliação do colégio para saber o quanto ele está estudando. Fora os que não estão nos colégios particulares, que estão matriculados nas escolas públicas também estão estudando normalmente – conta João Paulo Sampaio, coordenador de Divisão de Base do Vitória.
joão paulo; amadeu; vitória (Foto: Raphael Carneiro/Globoesporte.com)João Paulo Sampaio (esquerda) conversa com o Carlos Amadeu, técnico do Vitória Sub-20 (Foto: Raphael Carneiro/Globoesporte.com)
No total, o Rubro-Negro conta com sete diferentes categorias de base, que envolvem jovens entre 10 e 19 anos. O diretor de futebol de Divisão de Base, Epifânio Carneiro, diz que o clube conta uma forte estrutura para auxiliar os seus jovens.

- A escola é um assunto tratado aqui com muito respeito. Temos uma psicóloga, uma assistente social e duas mães sociais. Elas cuidam diariamente da frequência na escola e rendimento escolar. Sabemos das dificuldades que esses jogadores têm na base. São muitos treinamentos e viagens para torneios. Então isso prejudica muito o currículo deles, mas é uma preocupação nossa. Temos a missão de fazer destes garotos futuros jogadores do Vitória, mas, caso não tenham sucesso com a bola, precisamos fazer destes garotos cidadãos de bem. Mais do que a preparação de jogadores, aqui preparamos para ter homens lá na frente. A gente tem um carinho muito especial por esses meninos, até mesmo quando já estão no profissional – disse.

Já no Bahia, a preocupação maior é com a dificuldade de adaptação das crianças que chegam ao clube de diversas partes do país. O rendimento dos garotos nem sempre fica dentro dos padrões esperados.

- Atualmente trabalhamos com 90 atletas de 14 a 19 anos. Temos assistentes e mães sociais, mas temos dificuldades diante de uma situação cultural do Brasil. Por exemplo, eu recebo jogador em maio e, diante de uma série de razões, como o fato de vir de uma cidade pequena e com o ensino inferior, termina prejudicando.  Eles têm dificuldades de adaptação. Normalmente a gente tenta envolver a família, ressaltar a importância da frequência e do bom rendimento, mas é difícil – aponta Newton Motta, coordenador das Divisões de Base do Bahia.

MPE analisa situação dos clubes e estuda melhorias de condições
Preocupação com o baixo rendimento na escola, com as condições de moradia e de documentação. Um laudo preparado pelo Ministério Público da Bahia, em parceria com o Ministério Público do Trabalho e a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, aponta as preocupações do estado e de Bahia e Vitória com os garotos de suas divisões de base.
A partir destes apontamentos, o MP estadual objetiva garantir o cumprimento de alguns direitos dos jovens atletas das categorias de base dos clubes baianos. O documento tem previsão de conclusão no dia 7 de dezembro, segundo uma das coordenadoras da ação, a promotora do MPE Vilma Cecília Batista.
- Estamos fazendo uma inspeção em parceria com o Ministério Público do Trabalho. Estamos analisando as condições desses jovens atletas contemplados pela Lei Pelé - os acima de 14 de anos - e os que não entram na Lei Pelé - abaixo de 14 anos. Sei que tem muitas crianças matriculadas nos dois clubes. Já visitei o Bahia in loco, mas ainda não visitei o Vitória. Sei que tem uns garotos com boas notas, outras com notas não tão boas. Então precisamos analisar esse acompanhamento. Como fazer com que essas crianças passem a render na escola e como elas podem ser acompanhadas de uma forma que melhore esse rendimento – disse Vilma Cecília.
O coordenador de divisões de base do Vitória, João Paulo Sampaio, ressalta a importância da fiscalização dos órgãos e garante que, no clube, os estudos têm prioridade.
- É uma exigência do clube de formar o cidadão. Além disso, o Ministério Público está muito atuante. A fiscalização é constante. Eles vêm aqui sem avisar pela menos duas vezes no ano. E, aqui na base, a gente sempre abre mão em função da escola. Eu tive goleiro que chegou da Seleção e tinha finais do Baiano. Só que ele havia perdido algumas provas e tinha segunda chamada no mesmo dia da final do Campeonato Baiano infantil da época. Eu falei: ‘Vá fazer sua prova’ e ele foi fazer. Não teve jogo para ele – conta Sampaio.
A função do MP, no entanto, não se restringe à defesa dos direitos dos atletas. A entidade também tem como dever encontrar meios de proteger os clubes de irregularidades.
- Um ponto levantado pelo Vitória é uma preocupação dos clubes com documentação falsa. Muitos desses garotos chegam com documentos do irmão, de algum parente, com idade adulterada. A preocupação é uma forma de estudar como os clubes podem se proteger disso – disse a promotora.
Experiente, o coordenador do Bahia, Newton Motta diz que a situação em relação aos “gatos” atualmente é mais tranquila devido aos avanços sociais do Brasil.
- Ainda existe, mas hoje temos um acompanhamento muito maior. O próprio governo ajudou muito em termos de cidadania. Então quando chega aqui, a gente procura fazer toda uma pesquisa, desde o batistério (certidão de batismo), certidão de nascimento, tudo. Hoje ainda tem o exame de idade óssea. Há uma legitimidade maior – acredita o dirigente do Bahia.

Um Ba-Vi de exemplos

Nos grupos atuais de Bahia e Vitória, alguns atletas do grupo profissional mostram uma preocupação maior com os estudos e esperam servir de exemplo para os mais novos. O zagueiro tricolor Danny Morais e o meia rubro-negro Pedro Ken concluíram os estudos na escola e chegaram a iniciar a vida no Ensino Superior, mas tiveram que largar a faculdade devido à dedicação integral ao futebol, quando se tornaram profissionais.
Pedro Ken (Foto: Reprodução / TV Bahia)Apaixonado por livros, Pedro Ken passou no vestibular, mas escolheu a bola (Foto: Reprodução / TV Bahia)
Apaixonado por livros, Pedro Ken passou de primeira na PUC de Curitiba. O jogador chegou a cursar um semestre de Educação Física, mas precisou deixar os estudos para acompanhar o Coritiba nas viagens do clube.

- Cheguei ao Coritiba com 10 anos, dividia o futebol com o estudo puxado, já que meu colégio era muito bom. Nunca fui para uma recuperação. Quando chegou na época do vestibular, passei de primeira na PUC, no curso de Educação Física – relembra o meia.

As viagens pelo clube também fizeram Danny Morais, aprovado no curso de Educação Física em Porto Alegre, optar por deixar os estudos de lado. No entanto, o zagueiro manteve o interesse no ambiente acadêmico e espera voltar em breve aos estudos. O jogador é colaborador de um site americano sobre futebol, no qual escreve em inglês.

- Já fiz mais da metade do curso de Educação Física e tenho certeza que vou terminar para poder exercer alguma coisa no futuro. Em relação ao inglês, eu estudo bastante. Estudava em Porto Alegre e agora faço aulas aqui em Salvador – conta Danny Morais.
Além da dupla, o zagueiro do Bahia, Lucas Fonseca, destoa como um caso à parte. O defensor começou tardiamente no futebol para se dedicar aos estudos. Por outro lado, uma jovem promessa da base do Vitória, o volante Gabriel, sonha com um diploma. Todas estas histórias o GLOBOESPORTE.COM conta ao longo desta semana na série de reportagens sobre o futebol e a escola.

Fábrica de sonhos. Usina de ilusões
base bahia (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)Jovens tentam a vida no futebol e na maioria das vezes, deixam a escola de lado (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)
Milhares de crianças passam anos de suas vidas divididos entre a escola e os clubes, mantendo vivo o sonho de se tornarem jogadores de futebol, mas nem sempre isso é possível. A grande maioria desses garotos sequer chega perto de disputar uma vaga entre os profissionais. Apenas uma pequena parte desses meninos terá o futebol como profissão.

Para o coordenador de divisões de base do Vitória, João Paulo Sampaio, a categoria é uma grande usina de sonhos, mas se revela uma enorme fábrica de ilusões.

- Porque eu falo que a divisão de base é uma grande fábrica de ilusão. Poucos vão chegar. No Vitória, a janela é um pouco maior, mas 80% não vão dar certo. Em outros clubes, 95%. Então esses meninos precisam se preparar. Eu sou um caso desses. Sempre me preocupei em estudar. Fiz duas faculdades e, se não, não estaria fazendo esse trabalho que faço hoje. E tem “N” exemplos de atletas que não tiveram condições de administrar a própria vida. Por isso, todos os profissionais aqui são capacitados, formados com nível superior. Porque o Vitória se preocupa com a formação do homem e não só do atleta. Fui atleta do Vitória. Tenho 22 anos de casa. Fui atleta do júnior, cheguei a jogar no profissional. Parei, fiz faculdade, doutorado, agora estou fazendo MBA em gestão – conta João Paulo.
emerson ferreti (Foto: Arquivo pessoal/ emerson ferreti)Ex-goleiro, Emerson concluiu os estudos e agora é
dirigente (Foto: Arquivo pessoal/ emerson ferreti)
O ex-goleiro Emerson Ferretti, ídolo do Bahia e com passagens pelas categorias de base da Seleção Brasileira, faz coro com as declarações de João Paulo. Emerson admite que foi uma exceção à regra.

- O que facilitou estar ligado ao conhecimento durante minha carreira como atleta foi o fato de eu gostar de estudar, o que é a exceção da regra, infelizmente. A maioria dos atletas não gosta e, devido às dificuldades de conciliar estudo e carreira, acabam deixando os estudos completamente – disse.

O coordenador de Divisões de Base do Bahia, Newton Motta revela outro problema que distancia da escola alguns jovens candidatos a atletas: o talento.

- O problema é que muitos jovens nos quais a gente consegue ver vocação para o futebol acham que o estudo é um detalhe, justamente porque eles têm talento. Eu duvido, por exemplo, que o Neymar tenha sido um bom aluno. É claro que existem exceções, como o caso do Kaká, mas para a maioria desses garotos, o estudo é detalhe. Muitos clubes fazem um bom trabalho nesse quesito nas bases, mas é preciso levar essa situação em conta – afirma Motta.
base bahia (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)Em busca dos sonhos do futebol, há caminhos que não fecham as portas para a escola (Foto: Eric Luis Carvalho/Globoesporte.com)
Crianças que desde cedo galgam uma vida melhor para seus familiares tentam reescrever uma história nos gramados. Crianças com sonhos de gente grande e uma responsabilidade que não cabe nas pequenas mãos. Responsabilidade que é colocada à prova no talento e nos pés dessa garotada que cresce com a consciência de que é preciso manter um olho na bola e outro na sala de aula.

A partir desta segunda-feira, o GLOBOESPORTE.COM inicia uma série com cinco reportagens sobre a relação da escola com Bahia e Vitória, os principais times baianos. Nesta terça-feira, você confere a história de Danny Morais e Pedro Ken, jogadores de sucesso que estiveram perto de trocar o futebol pela universidade.

 

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